Afrikaburn - o festival  do tudo e do nada

Redação We Go OutRedação We Go Out
11/07/2017 20:15

Quando a gente pensa em perrengue de festival, o que vem à mente primeiro? Longas filas pra comprar bebida, o trem de volta de Interlagos depois do Lollapalooza, acampar na lama do Glastonbury... certo? Esquece isso tudo. Quando a gente foi convidado pro Afrikaburn, o filho sul africano do Burning Man, sabíamos que o evento demandava um boa dose de preparação e uma dose ainda maior de desapego.

Não pega celular, o ambiente do deserto é inóspito e NADA é vendido, exceto gelo, a 5 horas de Cape Town e 2 ou 3 horas da ultima cidade, dependendo de quantos pneus furados você tiver.

Foram seis meses de preparação, muitos textos lidos e conselhos de amigos que já foram várias vezes, mas quando chega a hora a gente percebe que nada pode te preparar pro que realmente é um Burn.

A primeira surpresa, acompanhada de um certo choque de realidade, vem logo no portão: os voluntários da recepção te saludam com um ‘Welcome home!” de encher os olhos de lágrimas. A imensidão desértica de Tankwa será a sua casa por uma semana e aquela mistura de gente é o seu povo a partir do minuto zero depois de cruzar os portões.

Chegamos de noite e fomos em busca da grande bandeira do Zimbábue que anunciava nossos colegas de acampamento: um grupo de amigos de Bulawayo que achamos no Facebook. Ainda acanhados e tentando entrar no espírito da coisa, fomos cobertos de beijos e abraços por pessoas com quem só tínhamos trocado e-mails e nossas barracas foram montadas em 5 minutos com a ajuda de todo mundo. Pronto, agora é só aproveitar.

A primeira manhã no deserto parecia os 5 minutos iniciais de um filme sobre um futuro distópico em outra galáxia. Uma amplitude espacial imensurável, o céu mais azul que eu já vi na vida, esculturas gigantescas e instalações montadas com esforço coletivo para uso coletivo, e muita gente livre exercendo um dos princípios do festival: radical self expression. É pra ser quem você quer ser mesmo, do jeito que você quiser!

Tem peito de fora, bunda de fora, tem punk de rolê com rastafári, tem famílias com crianças vestidas de dinossauro, tem septuagenários de mãos dadas passeando, tudo junto convivendo na maior harmonia do mundo.

Mas peraí, você não falou de show, palco, line up até agora. Então, no Afrikaburn não tem nada disso mesmo. Todo mundo é autorizado e encorajado a ser atração. Você pode ligar sua caixa de som e fazer a sua pista empoeirada, você pode levar sua banda, ou você pode correr atrás das dúzias de carros mutantes que tão passando de um lado pro outro com um dj fazendo um som. São varias festas acontecendo o tempo todo, além de mais um tanto de atividades pra quem não é aloka da balada. Rola yoga, pintura, oficina pras crianças, tem café de graça o tempo todo, alguém declama uma poesia aqui, outro grupo tá fazendo uma performance estranha lá e tem gente até dando banho nos outros, passando a esponjinha ensaboada lá mesmo, de graça, sem esperar nada em troca.

Um dos princípios mais emocionantes do festival é o gifting. Não, não é troca! É presente mesmo! As pessoas levam coisas que elas acham que os outros vão ficar felizes em ganhar por que elas querem fazer os outros felizes, nem que seja por um minuto. Tem gente dando drink, tem gente dando pirulito, tem risoto do ganhador do Masterchef Itália na faixa, tem brasileiro amarrando fitinha do Bonfim na galera e tem gente dando o tempo delas pra você. Uma senhora entrou no nosso camp sem ser convidada, deu oi com um sorriso que eu nunca vou esquecer, e borrifou água em um por um de nós, pra ajudar com o calor de mil graus no meio dia do deserto. Não pediu nada em troca, deu uma abraço apertado em cada um e seguiu pro camp do lado, até hoje não sei onde ela foi parar.

A inutilidade de passaporte, cartões de credito, dinheiro e celular faz com que as pessoas estejam presentes de fato. Os sorrisos são mais fáceis, os abraços mais demorados e apertados e o “como vai você?” vem acompanhado de olhos e ouvidos realmente interessados em saber como vai você.

Amarras sociais são abolidas, desde que haja respeito mútuo, e por uma semana no Afrikaburn as pessoas vivem as vidas que elas sonharam, sem filtro, sem preconceito, sem julgamento, e principalmente com o coração aberto a tudo e a todos. Mesmo com tanto peito de fora eu não presenciei nenhum caso de assédio. Os acampamentos não tem cerca, porta, fechadura, mas ninguém entra no camp de ninguém pra roubar nada. As pessoas mais diferentes entre si se abraçam e dançam juntas numa boa, por que ali todo mundo tá em casa.

Por falar em dançar, tem música o tempo todo (fuja da Loud Zone se você pretende dormir em algum momento!). A prevalência de musica eletrônica é forte, e o comentário geral dos burners mais experientes é que esse ano a coisa tava repetitiva, pouco variada, que foi o que a gente achou também. Mas procurando bem você acha festa com rock anos 80, pop, bate cabelo, gente tocando violino, pianista tocando jazz. A festa não para, e se parar e você tiver com pique, você pode começar a sua própria festa, com a música que você quiser.

Nos últimos dias o nome do festival começa e se justificar. A gente precisa entregar o deserto do jeito que a gente achou (leave no trace), e alguma coisa precisa ser feita com o tanto de escultura de madeira que tem lá. O jeito mais fácil de resolver é tacando fogo! Uma a uma as obras vão sendo queimadas, rodeadas de gente em estado catártico, feliz e emocionada. A queima mais bonita é a do Temple of Gratitude, que é o único momento em que toda a música para, todas as luzes se apagam e todo mundo se reúne pra ver o fogo, no silencio do deserto. Não restam olhos sem lágrimas, nem os desse escritor agora.

Afrikaburn

E no Afrikaburn tudo isso funciona com o mínimo de organização centralizada. There’s no spectators, everyone is crew, é um dos lemas espalhados por todos os lados. Todo mundo faz tudo, a pessoa que te recebe na porta e te dá sua pulseirinha (tenta cortar ela depois pra ver a dor que dá no coração), a segurança nas queimas, quem está catando papel higiênico do chão, técnicos de som, dj, todo mundo é voluntário, e você pode fazer qualquer coisa dessas.

O que sobra depois de um evento onde tudo é tão intenso, do perrengue ao amor, do calor ao frio, da balada ao silencio? Eu tô tentando carregar comigo um pouquinho do sorriso fácil para desconhecidos, a gentileza gratuita, os amigos que eu fiz, a habilidade de sobreviver com pouco. Mas uma coisa que ficou de vez é a saudade daqueles dias empoeirados e a certeza que ano que vem eu tô lá no Afrikaburn de novo.

Texto por: Túlio Notini