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Papo de DJ e música eletrônica com mulheres, no mês delas

Redação We Go Out
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Por Maria Angélica Parmigiani

O universo da música eletrônica encontra-se dominado majoritariamente por homens e isso não é novidade. Homens brancos, cis, héteros e com poder aquisitivo. Em suma, é quase sempre esse roteiro, ou pelo menos, é sobre quem detém o poder de decisão e para muita gente, tudo isso parece ser normal, mas não é. Pergunto: só existem homens brancos fazendo o corre? A resposta é não! Aliás, enquanto mulher escrevendo este texto, sei que para a parcela feminina é bem cansativo observar a falta de espaço promovida, já que sabemos que há muitas profissionais capacitadas em todas as esferas, mas que muitas vezes são resumidas a uma cota, que nem mesmo é plural. Mulheres brancas, cis, vem logo em seguida nessa pirâmide e cabe a estas, entender a importância de seu papel para essa evolução. 

Se hoje vemos o cenário em um movimento de quebra dos muros dos padrões sociais, temos que entender que ele nem mesmo era assim. O Techno e o House são movimentos de contracultura que surgiram através das minorias, como um local seguro para se libertar e pertencer. Em minha opinião, sua essência política vem reverberando cada vez mais no eixo da coletivização. O que nos últimos anos, rendeu um efeito de viés mercadológico interessante, impulsionando outras esferas, mas ainda em velocidade lenta e que na transição pandêmica, infelizmente, parece ter sofrido um revés em alguns meios. Sim, ainda caímos no velho golpe da estrutura social, sobre uma balança que só pende para um lado, favorecendo e enxergando somente seus pares e deixando tantos outros de fora. Um mecanismo tóxico enraizado no DNA do nosso comportamento. Basta olhar para grande parte dos line ups e você perceberá o padrão. E por essa razão o tema, o diálogo, as costuras e a repetição são imprescindíveis.

Sempre que o mês de Março chega, as reflexões surgem, reforçando a importância dos do debate para evolução social e também o convite para que a fatia dominante pondere e mude. O Dia Internacional da Mulher não é uma data celebrativa para que sejamos presenteadas ou parabenizadas, é uma data política, simbólica, de luta, mas que ainda está evoluindo dentro do seu próprio centro e entendendo conceitos importantes para o feminismo, como o da interseccionalidade, que se refere à como cada mulher sofre opressões com base nas diferentes categorias sociais.

Por isso, nosso convite hoje é promover a reflexão através das pautas, sejam por um viés de inspiração e encorajamento, que também são muito importantes para encorajar a nova geração ou então pelo debate sobre as questões problemáticas do meio e sua respectiva evolução. Um textão desse deve ser lido e relido por todes (inclusive a redatora que vos escreve). É dessas reflexões que surge o desejo de mudar. 

Nem preciso dizer que é também uma ótima oportunidade para você começar o exercício e conhecer o trabalho dessa lista poderosa. Siga estas mulheres, consuma seus trabalhos e leve os nomes delas para as rodas de conversa e nas curadorias artísticas. E claro, se puder e estiver de acordo, compartilhe esse texto e troque ideia sobre a questão. Precisamos de aliados. Boa leitura e boas reflexões!

Agradeço às mulheres que toparam participar colaborativamente e desprenderam seu tempo nisso e também ao parceiro de profissão, Rodrigo Airaf por me conectar com algumas delas. É muito importante essa troca!

Ella De Vuono, por que é importante mantermos os diálogos ativos sobre igualdade de gênero e ambientes mais inclusivos para as minorias? Você sabe que muitas mulheres têm medo de se posicionar por correr riscos de serem boicotadas. Em sua opinião: como ser artista e contribuir com a causa?

música eletrônica mulheres

Ella De Vuono: Quanto mais diálogos sobre o assunto tiver, mais este se torna relevante. Não ouvimos falar tanto em "antes não se falava sobre isso"? E quanto mais relevante o assunto fica, mais ele se torna uma revolução, tornando quase que obrigatório saber-se que tal questão é importante para a humanidade. E uma vez que temos uma revolução, mudanças acontecem e é o que vemos em muitos lugares, grandes festivais de música e até mesmo no Oscars, premiação majoritariamente branca e masculina, essa preocupação com a diversidade, coisa que há pouco tempo não existia. E quando a diversidade ocupa espaços como premiações, grandes palcos, papéis em séries e filmes, protagonismo na ciência e na política, temos algo vital para a humanidade que é a representatividade. Ou seja, as "minorias" que estão ali assistindo percebem que aquele espaço pode ser delas, pois elas enxergam um semelhante ali. 

Exatamente, muitas mulheres têm medo do boicote e preferem se abster de uma luta a qual elas pertencem e que só vai trazer melhores frutos para todas. Não sou ninguém para passar uma fórmula de como contribuir com a causa, mas posso dizer como tenho feito e que tem funcionado muito bem. Por mais difícil que seja ler ou ouvir absurdos que para mim são basais, eu tento sempre resolver na conversa, de forma respeitosa e trazendo questionamentos com argumentos concretos. Pois se eu partir para o ataque, vai ser uma rivalidade eterna. É fundamental entender que, quem está lá no topo das curadorias, é uma maioria esmagadora de homens, brancos, cisgênero e ricos. Então, se eu parto para uma forma agressiva de mostrar o quão desproporcional são suas curadorias, eles vão se ofender e me odiar e ponto. Eu fico como a feminista histérica da história para eles e eles ficam como os machos escrotos para mim. E não é isso que eu quero, eu realmente busco por mudanças e é tudo um jogo, com regras e estratégia. Não é culpa dos jogadores e sim do jogo. 

Outra coisa muito importante é entender que, mesmo não estando no lugar de fala para questionar a dor do outro, os homens brancos cisgêneros podem sim aderir a esta luta. Quando curadorias 100% masculinas começarem a incomodar os homens também e eles falarem sobre isso, daí essa revolução ganhará ainda mais força. Então, se você é artista ou trabalha no meio, comece a se preocupar com representatividade. Exija mais diversidade e, se você é dono de agência, festas ou qualquer tipo de plataforma que tenha algum alcance para o público, faça questão que sua curadoria seja diversa, com mulheres, comunidade preta, LGBTQIA+, indígenas e assim por diante.

Natália, qual conselho você dá para que homens engajados com nossa causa possam contribuir mais e melhor por um mercado com oportunidades mais equiparadas?

Natalia Zaneti: " Penso que qualquer profissional, seja mulher ou homem, só será um bom profissional quando adquirir experiência, no nosso meio não é diferente, estudamos, treinamos, produzimos música. Mas, só teremos destaque se começarmos abrindo a festa e depois evoluindo no line, as pessoas nos vendo tocar, porque é totalmente diferente de escutar um set no Soundcloud, por exemplo, ou assistir uma live. Sabemos que a maioria dos eventos são produzidos por homens, então a contribuição seria abrindo espaço para mais mulheres, fazendo questão de ter mulheres no line. Uma outra maneira é o velho e bom boca a boca… se você é homem ou mulher e curtiu o set de uma mulher, a elogie para outras pessoas, compartilhe set, rede social, próxima gig. Hoje já sinto essa movimentação rolando, mas pode ganhar mais força! :)"

B4RBRA, você está dentro do Techno, um ambiente majoritariamente dominado por homens brancos, atualmente. Por que você acha que a diversidade se faz importante e como  incentivar mulheres a ingressarem na discotecagem e produção musical?

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B4RBRA : "Hoje o Techno pode até estar dominado por homens brancos, mas ele surgiu no gueto. Em sua essência, o Techno é das minorias, dos gays, dos negros, dos pobres. Acho muito importante nunca perder isso de vista e, nesse aspecto, bater na tecla da diversidade é fundamental. É resgatar a essência e honrar sua história. Atualmente também temos muitas representantes femininas no Techno e espero que cada vez tenhamos mais. A representatividade é um fator fundamental para que isso aconteça. Que ao conhecerem outras artistas, mais mulheres se sintam capazes de ocupar esse lugar. Felizmente, muitos homens parecem estar engajados na nossa luta por igualdade e representatividade, então hoje contamos com uma importante rede de apoio que não se limita somente a mulheres. Essa luta é de todos e, no que depender de mim, a mulherada vai dominar a cena."

Mia, em décadas de carreira você teve conquistas importantes, como a criação do coletivo Sonido Trópico e apresentações internacionais. Sentiu alguma diferença de pensamento de lá para cá em relação à abertura para as mulheres no cenário dance? O que você acha que pode melhorar atualmente?

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Mia Lunis: " Eu sinto algumas melhora no reconhecimento de mulheres trans, mulheres negras, LGBTQIA+ em line ups em que antes haviam mais homens brancos cis, ainda assim um espaço que pode evoluir a nível que reconhecimento não somente profissional mas também a nível de consciência de certas questões de inclusão entre os artistas e o público. 

Sinto também que além da questão de inclusão há uma certa divisão de vertentes muito marcada no cenário eletrônico, o artista toca slow e suas micro vertentes ou toca techno e não há meio termo na cena que se tornou de certa forma binária, então independente de ainda discutirmos inclusão, a cena limita a pesquisa por certos artistas que apresentem X ou Y e caso o artista não siga uma vertente propriamente dita ele se vê novamente excluído de um meio em que deveria dar espaço para mais inclusões e isso acaba se refletindo a nível pessoal na vida do artista que integra minorias. Então acho que isso poderia ser uma pauta de discussão entre produtores de evento e artistas de um modo geral."

Molothav, enquanto produtora musical, compartilha conosco um momento de empoderamento feminino que te inspirou na carreira e que pode inspirar nossas leitoras. 

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Molothav: " Quando comecei meu projeto, em 2017, o principal objetivo era contribuir na mudança do cenário que tínhamos na música eletrônica: 99% dos DJs e produtores eram homens. Mais de 3 anos depois eu conquistei uma vitória imensa ao ser a primeira mulher a lançar no selo underground da maior gravadora da América Latina (Hub Records). Me lembro que quando eu recebi a notícia, meus olhos encheram de lágrimas, e eu tremia. Pode parecer uma coisa boba, mas esse reconhecimento do meu trabalho veio num momento que eu precisava muito de um empurrão e de realmente sentir que tudo aquilo que eu tinha feito até então, valeu a pena. Me motivou para continuar (mesmo com a pandemia), me deu uma sensação de estar no caminho certo e cumprindo meu objetivo traçado lá de 2017. A partir dali, me senti com o “poder” de continuar. Parecia até um super poder, algo tipo: “sim, eu posso e eu consigo fazer isso acontecer!”. É surreal como esse sentimento te move e pode te levar a lugares inimagináveis!"

Paula, você é bastante vocal sobre a posição das mulheres que fogem da estética padrão. Como tem lutado contra esses preconceitos na sua década de carreira e o que você espera dos seus aliados e colegas de indústria daqui em diante?

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Paula Pretel: " A gente vive numa era em que a venda da nossa imagem às vezes vale mais que o nosso próprio conteúdo e trabalho. Afirmo isso com veemência ao observar a lógica de ascensão e notoriedade de tantos instagrammers e youtubers que mercantilizam sobretudo seus corpos, lifestyles, padrões de consumo para tornarem-se figuras influentes e capitalizadas. É natural que toda esta lógica respingue em inúmeras bolhas e não acho que o contexto da música eletrônica esteja fora deste mecanismo. 

Sinto que mulheres precisam recorrer a um padrão de mercantilização da própria imagem, que é muito conectado com as opressões patriarcais estruturadas na nossa sociedade, como, por exemplo, preencher papéis ligados à feminilidade e à sexualidade. Quando você está fora dessa expectativa, ou seja, é uma pessoa fora dos padrões estéticos impostos aos nossos corpos, automaticamente você sofrerá o peso da invisibilidade. É razoável dizer que diariamente vejo arestas desta lógica recortando minhas oportunidades, como se eu precisasse recorrer à renovação dos meus conteúdos visuais pensando em looks faraônicos, maquiagens elaboradas, poses contundentes, cabelo tratado, skin care, acessórios da moda, dieta lowcarb ou outros aspectos. Não vejo os homens se preocupando com isto. Não será esta necessidade mais uma opressão binária de enquadrar pessoas em papéis que nem sempre querem cumprir?

O que eu espero dos meus colegas do meio é que notem mulheres, pessoas queer, pessoas fora do padrão por suas jornadas, além de dessexualizar as nossas imagens! Li um tweet do Akin Deckard que me pegou de jeito e que dizia "De tempos em tempos é bom se perguntar: você ama a noite ou você ama a música? Porque a noite não ama ninguém, como se nada tivesse a ver com música de fato. Ou se tem, a que custo, em quais termos?". Será que o mercado da música eletrônica olha para a música, de fato? Para a cena? Para as vivências que se interseccionam para criar um nicho diverso e representativo? Ou será que estamos sendo pautados por uma troca de influência que financia um hall seleto de artistas detentores do mesmo recorte social que mencionei? Que, por vezes, validam ou um ou outro artista prete/trans/não-binarie/fora do padrão/periférico para se parear um discurso mais democrático? Sinto falta de quando a cena era só rua, suor e disposição."

Jessica Brankka, qual é a sua mensagem de empoderamento para o Dia Internacional da Mulher para todas as artistas e profissionais do ramo que seguem na luta por um ambiente de trabalho mais justo?

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Jessica Brankka: " O feminismo sempre será nossa luta diária e isso que faz de nós ainda mais especiais. Que não deixemos de acreditar sempre no nosso verdadeiro potencial e que essa força, beleza, sensibilidade e sensualidade que esta dentro de cada uma de nós mulheres são nossos aliados e podem sim nos ajudar a romper ainda mais barreiras e nos colocar em lugares jamais imaginados."

Ekanta, você é uma veterana na música eletrônica. Qual é o conselho mais importante que você poderia dar às jovens mulheres que estão pensando em ingressar em uma carreira de DJ e/ou produção musical, mas tem receio?

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Ekanta: "Coragem meninas! Toda nova jornada gera um receio, mas os caminhos já foram abertos e hoje temos tudo pra conquistar nosso espaço que está cada vez mais amplo! Basta acreditar! É uma profissão como todas as outras, demora um tempo pra gente se firmar e ser reconhecida, não é só glamour e tem perrengue também… mas uma coisa eu  digo por experiência própria: toda luta vale a pena e o caminho é muito especial!"

Transvegana, como você enxerga atualmente a visibilidade trans na cena eletrônica e o que sugere que seja feito por quem está disposto a contribuir para dar mais amplitude e espaço para essas mulheres?

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Transvegana: " Eu vejo a cena eletrônica como um ambiente acolhedor para a comunidade trans, sendo um espaço de convívio entre essas pessoas, estimulado pela política da lista T — lista que garante cortesia na entrada em alguns eventos da cena eletrônica para travestis, homens e mulheres trans e pessoas não-bináries. Mesmo assim, o acesso aos eventos se torna inviável para muitas pessoas da nossa comunidade, já que não teriam condições financeiras de se transportar até a festa. Antes de ir a um rolê, essas pessoas estão lutando diariamente para sobreviver.

Imagino que as festas da cena eletrônica podem ajudá-las nessa questão da sobrevivência, se puder ser uma fonte de renda ou mesmo uma carreira. Precisamos pensar em permanência, só a entrada não é suficiente. A política de inclusão precisa avançar, com uma inserção cada vez maior de pessoas trans no staff dos eventos, desde limpeza, bar e segurança até produção e posições artísticas. As pessoas que estão dispostas a contribuir para dar mais espaço e amplitude para as pessoas trans precisam estar dispostas para capacitar e qualificar essa comunidade, ou até mesmo ceder os seus espaços."

Leia também: Milena Paiva, produtora artística dos clubes Laroc e Ame, conta sobre sua trajetória como mulher de sucesso na música eletrônica

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